segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Fuscão preto




Estávamos eu e minha esposa, Vanuza, na cozinha, quando tocaram a campainha de nossa casa. Retirei-me da mesa e fui verificar quem era. Pelo olho mágico do portão, vi que era Carlos, o primo dela.  Abri o portão, e ele adentrou.
      “Querida, é o seu primo, Carlinhos.” Gritei de lá mesmo para Vanuza.
Eu e Carlinhos éramos sócios. Nós tínhamos uma loja de carros usados, porem fazia algum tempo que nossa loja andava meio parada. Como dizem algumas pessoas, essa coisa de carro de segunda mão “já saiu de moda".
     Eu o conhecia desde que havia me casado com Vanuza, a melhor coisa que eu achava que havia feito na vida! Um amor que parecia tão sincero, puro...
“Olá, primo! Já almoçou?” Perguntou Nuzinha, a Carlinhos, quando nos viu chegar à cozinha.
“Não, prima, mas aceito um prato de comida, se não for incômodo, é claro.” Disse ele, sorrindo.
“Claro que não é incômodo algum, Carlos, sabes disso.” Retrucou ela, já se levantando para pôr mais um prato na mesa.
Estávamos conversando durante o almoço, quando de repente o assunto voltou-se para o meu fusca. Não é querendo me gabar, mas o meu fusquinha está em perfeito estado. Quer dizer, estava, até minha mulher me pedi-lo emprestado.
“Querido, você poderia me emprestar seu carro? Tenho uma consulta às 15 h no ginecologista, mas, como sabemos, o trânsito aqui de São Paulo é horrível, e você sabe que eu odeio andar de ônibus.” Disse-me ela, alisando os nós de meus dedos.
“Sem problemas, querida. Posso ir a pé para o trabalho, tendo em vista que são apenas quatro quadras de distância aqui de casa, e já faz um tempinho que estou querendo perder uns quilinhos. Uma boa caminhada cairá bem.” Respondi-lhe.
Quando saí de casa, Carlinhos me acompanhou até certo ponto do caminho, depois partiu dizendo que ia resolver alguns problemas da mãe. Passei a tarde na loja, atendi uns 7 clientes no total, contudo apenas 3 fecharam negócio.
Como já disse, não estamos vendendo como antes. Quando finalmente chegou a hora de fechar a loja, ansiava ir para casa encontrar meu bem e ter uma noite maravilhosa com ela. Pobre de mim, mal sabia o que me esperava de ali em diante.
“Querido, por favor, não brigue comigo...” Disse-me Vanuza, parecendo desesperada.
“O que aconteceu, querida?” Perguntei, curioso e aflito ao mesmo tempo.
    “O seu carro... Eu o abandonei há algumas quadras daqui. Quando eu estava indo para o ginecologista, ele deu o prego em uma rua. Amor, eu não sei qual o nome da rua, mas sei onde fica, tá? Por favor, não brigue comigo.” Quando ela acabou de falar, começou a chorar.
“Vanuza, por que você não me ligou? Não era pra ter abandonado o carro em uma rua que nem sabe o nome. Que horas isso aconteceu?” Falei tentando não demonstrar minha irritação. Ela sabia que eu morria de ciúmes do meu carro. Isso nunca havia acontecido.
“Querido, o meu celular estava descarregado. Eram umas 14 h mais ou menos.”  Falou ela, chorando.
“Por favor, pare de chorar. Isso não vai adiantar nada. Amanhã pela manhã iremos a essa tal rua. Quer dizer, isso se você souber mesmo onde é.” Já era tarde, ir a essa “tal” rua àquela hora poderia ser muito perigoso, já que não sabia onde o carro estava exatamente.
Jantamos em silêncio, em seguida fomos nos preparar para dormir. Não sei o que me deu, mas senti uma necessidade enorme de verificar o celular da minha mulher. Sentia como se algo estivesse errado e, quando percebi que ela havia adormecido, fui até a bolsa dela e peguei o seu celular. Pra minha surpresa, havia várias chamadas de um número desconhecido.
Chamadas essas que tinham sido atendidas na hora em que ela dissera que o carro dera o prego. Mas quem diabos estaria ligando para ela? E por que ela mentiu para mim ao falar que o celular estava descarregado? Confesso que esses fatos tiraram-me o sono. Havia algo de muito errado naquela historia, e eu ia descobrir o que era.
Na manhã seguinte, assim que acordei, liguei para Carlinhos vir até minha casa, para ir conosco procurar a rua em que o fusca fora abandonado. Alguns minutos depois, ele chegou em um dos carros da loja, o que tornou mais fácil nossa busca. Como havia dito, Vanuza realmente sabia onde era a tal rua e, de longe, ao ver o meu fuscão, meu coração se alegrou.
Mas, ao mesmo tempo, mais dúvidas me vieram à cabeça... Eu sabia muito bem onde era a clínica que minha mulher frequentava, e aquele não era o caminho certo. Pra falar a verdade, a clínica ficava em um caminho totalmente diferente.
“Olha ali o seu carrão, Pedro.” Falou Carlinhos num tom meio irônico.
“Olha, amor, tá vendo?! Eu disse que sabia onde ele estava.” Completou Vanuza, com um sorriso de orelha a orelha.
Não falei nada, permaneci calado, apenas com meus pensamentos que estavam fervendo.  Depois de ter chamado um mecânico ao local, ele verificou o que tinha de errado com o carro e o consertou provisoriamente. Disse que o motor não estava bem e precisava de reparos. Com o problema resolvido, Carlos foi direto para a loja, e eu e Vanuza fomos para casa no meu fusca.
Quando chegamos em casa, fui rapidamente até o quarto e, na agenda telefônica que deixamos em cima do criado-mudo, verifiquei o número da clínica que Vanuza frequentava. Anotei-o em um pedaço de papel e voltei para a sala rapidamente antes que ela notasse algo.
“Amor, prometo que isso nunca mais irá acontecer, ok?” Disse ela, me abraçando.
“Tudo bem, querida. Agora preciso sair, tá? Vou resolver algumas coisas da loja, mas volto para o almoço.”
Entrei no carro e dirigi a umas 5 quadras distantes da minha casa. Parei por um momento e disquei o número da clinica em meu celular.  Alguns segundos depois, uma senhora atendeu.
“Alô?! Bom dia! Com quem falo?” Perguntei apreensivo.
“Bom dia, senhor! Aqui quem fala é Isabel, secretária do doutor Alexandre, ginecologista. Em que poderia ajudá-lo?” Falou-me, serenamente, a secretária.
“Minha mulher tinha uma consulta marcada ontem, todavia teve um contratempo e não pôde ir. Ela pediu-me para telefonar e saber se  poderia remarcar a consulta para hoje à tarde. Isso é possível? Ahh, ela se chama Vanuza Albuquerque de Lima.”
“Sim, é possível, senhor. Pode aguardar um momento? Vou verificar a falta na consulta de ontem.”
      Alguns minutos depois, ela retornou.
“Senhor?”
      “Sim, estou aqui, pode falar.”
      “Desculpe-me, mas aqui não consta nenhuma consulta com o nome de sua esposa.”
   Automaticamente, sem nem raciocinar direito, desliguei o celular na cara da secretária. Naquele momento, não sabia mais o que pensar. Por que Vanuza havia mentido pra mim? Para onde será que ela estava indo ontem? Fiquei ali, sentado no carro por alguns minutos, depois dirigi em círculos pela cidade, até que a hora do almoço chegou. Fui para casa, onde Vanuza esperava-me na mesa, com a comida pronta para ser servida.
    “Querido, fiz o seu prato predileto: lasanha!” Falou-me com um sorriso no rosto.
    “Hm, que bom, querida.” Foi apenas o que consegui dizer.
    Ela não ligou muito para o que falei. Sentei-me, e ela nos serviu. Eu olhava para ela, e tentava descobrir o que estava acontecendo. O que ela estava me escondendo? Eu precisava ter a certeza de que a clínica na qual ela dissera que tinha uma consulta marcada era a mesma que eu havia ligado.
    “Meu bem, qual era a clínica que você ia ontem? Foi uma pena não ter conseguido chegar lá.” Joguei uma verde pra tentar colher uma madura.
        “Ah, querido, a mesma de sempre... Saúde em Dia.”
        Eu sabia! Essa clínica é a do Dr. Alexandre,  para a qual eu havia ligado mais cedo.
    Sabia, agora, que ela realmente mentira para mim, porém o que ela fazia naquele lugar com o Fuscão e por que mentir para mim? Essa noite, assim como as anteriores, foi completamente perturbante para mim. A cada segundo que se passava no relógio, eu tentava responder a essas perguntas, mas não conseguia, ou talvez conseguisse, no entanto não queria aceitar certas respostas. "00h40, acho que não vou conseguir trabalhar amanhã, ou melhor, hoje".
     Ouço o som de buzina. Olho para o relógio. 7h30! Meu Deus!
    “Querido!” Vanuza grita de algum lugar da casa. “Querido, o Carlinhos está aqui e vai te levar para o trabalho, pra ser mais rápido! Vá se vestir!”. Olho pela janela e um dos carros da Loja está lá fora me esperando. Carlinhos deve estar com o carro.
  Nunca me apressei tanto para ir ao trabalho, chegamos à loja eram 08h05, tínhamos que tê-la aberto às 8, mas não tem problema. Carlinhos ficou comigo a manhã inteira, não poderia ir à tarde, pois iria ao banco resolver uns problemas em sua conta. Eu ia ficar na loja até umas 19h, entretanto não me contive depois da ligação de um amigo. Era umas 18h30.
  “E aí, Jorge! Como vai, parceiro?”.
  “Vou muito bem, cara, obrigado!”.
  “Então, o que queres falar comigo?”.
 “Cara, você sabe que não gosto de me meter nos relacionamento dos outros, mas você não tem noção do que acabo de ver.” Sua voz começou a me assustar.
“Ela acabou de sair do Chicken’s com um cara. Assim que vi, eu a reconheci. Quando ela saiu do restaurante e entrou no Fusca, eles se beijaram. Não deu pra ver o rosto dele.”
Fiquei imóvel. Não conseguira digerir tais informações. Jorge não precisava ter visto o rosto dele. O Chicken’s ficava a 3 quarteirões de onde o Fuscão tinha dado o prego. Pior, lembrei-me, então, de quando minha esposa passara mal no ano passado. Ela havia sido socorrida por um médico que morava próximo do local onde estávamos. Não era muito distante do Chicken’s. O médico que a socorreu trabalhava na clínica do Dr. Alexandre. Não! Não era possível! Tinha que estar louco! Estava tão perturbado com as perguntas na minha cabeça que já estava associando coisas que não tinham lógica alguma.
Nem esperei o expediente acabar, me despedi de Jorge e corri para casa. Carlinhos havia deixado o carro, pois sua agência ficara muito próximo de nossa loja. Nunca dirigi tão rápido. Podia sentir o meu sangue correr em uma velocidade muito maior que a do carro. Cheguei em casa. O Fusca estava estacionado em frente à garagem. Entrei sorrateiramente. Na casas,as luzes estavam acesas, e ouvi barulhos estranhos que vinham do quarto. Não, não era possível, meu coração batia tão forte, tão forte, que o som do ritmo podia ser ouvido por alguém ao meu lado. Cheguei à porta e, assim que abri, o vi e me assustei, porque não era ele, era pior.
 Não me controlei.
“Sua vadiaaa!”. Que droga! Ela estava montada em cima dele, em cima de Carlinhos! Tive raiva e nojo de mim mesmo. Parece que o que eu oferecia a ela não era o bastante. Se fosse, ela não iria atrás de outro.
Com medo, ela correu. Ele já estava dentro do Fuscão, esperando-a. Apenas com roupas íntimas, correu com tudo que pudera, antes que eu a puxasse pelos cabelos, e entrou no Fuscão.
Quando cheguei lá fora senti um cheiro de fumaça, mas não liguei. Carlinhos deu partida e saiu tão rápido que não poderia alcançá-lo. Andou até a esquina, vi apenas um rastro de fumaça saindo do Fuscão e ... BOOOM! Então lembrei-me de que o motor ainda estava com problemas. Deveria ter receio sobre sua morte, mas não o tive. Após sobreviver todos os anos, meu Fuscão partiu da melhor forma possível, levando o maior ódio que sentia, trazendo para mim , talvez, um pequeno consolo na consciência.

David Alisson
Tainara Lima

Conto produzido a partir da letra da canção brega Fuscão preto, de Almir Rogério.




Nenhum comentário:

Postar um comentário