segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Deixe essa vergonha de lado



Tudo começou em uma chuvosa noite de verão. Meu pai, que era viciado em jogos e apostas, gastou cada centavo que tinha e faliu nossa família, fugiu e deixou-nos atolados em dívidas. Minha mãe se esforçou, trabalhou horas e horas para dar a mim tudo que eu queria ou precisava, mas não foi o bastante. Um ano depois, lá estava eu, trabalhando como “empregadinha” de uma família muito rica, comecei a viver lá. Escondi que era empregada de todos os meus conhecidos, precisava ter cuidado... De jeito nenhum eu iria contar que era uma simples empregada, serviçal, plebeia. O que pensariam de mim?
Frequentava a escola e conversava com meus colegas como de costume, a única diferença era que agora eu não tinha mais tempo para curtir com eles, nem tempo, nem dinheiro. Outra coisa que também não mudou foi o fato de ter que me encontrar com o André todos os dias. Sério, não sei o que aquele menino tinha, achando que podia conseguir tudo que queria e que tinha moral pra tudo... Ah, faça-me um favor! Não sei como ele ainda não tinha sido expulso da escola. Quando éramos crianças, ele escondia minhas coisas, me jogava na piscina, me derrubava dos brinquedos...
Sem falar que, há dois anos, ele conseguira me chantagear para fazer os trabalhos dele por dois meses. O pior é que eu estava com as mãos atadas. Não podia me atrever a dedurá-lo ou me vingar (como quero). Se o fizesse, a “gangue” dele iria dar um jeito em mim. Parecia que ele tinha prazer em fazer crianças chorarem. Mas eu não tinha tempo pra me importar com quem não valia a pena.
Depois da escola, ia buscar Lucas, o filho da família para quem trabalhava. Na escola, ele tinha apenas 8 anos, era um amor de menino. Era lindo vê-lo brincar no parque sempre que voltávamos da escola. No resto do dia, eu trabalhava e à noite fazia meus trabalhos de casa. No outro dia, começava tudo de novo...
Já estava acostumada com a rotina, quando, sem motivo algum, recebi uma visita indesejada. A campainha tocou e, quando abri a porta, encontrei ninguém menos que André, com uma desculpa esfarrapada, dizendo que minha correspondência fora parar na casa dele. Disse-me que precisava de um favor, eu ignorei e o mandei ir embora, mas ele voltou e insistiu. Concordei. afinal, parecia ser a única forma de ele me deixar em paz.
Nos encontramos novamente dois dias depois, e seu pedido realmente me deixou surpresa. André pediu-me que fingisse ser sua namorada por um tempo. Quando perguntei por que eu faria isso, ele simplesmente jogou mais uma de suas chantagens: “Eu sei que essa casa na qual você diz morar não é sua. Sei que você tem um quartinho lá no fundo, que o menino que você chama de “irmão” é o filho dessa família”. Perguntei o motivo, e ele disse que era para ajudar um amigo, que estava tentando conquistar uma garota. Basicamente, seria um encontro armado. Fui obrigada a aceitar, pelo meu orgulho.
Não conseguia acreditar que ele havia descoberto. A única coisa que me assustava mais do que a possibilidade dos meus amigos e colegas descobrirem, era André descobrir.
Uma semana se passou e aquele fingimento não acabava, eu já não aguentava mais passar nenhum minuto perto daquele idiota. Certo que não precisávamos nos beijar nem nada assim, mas já estava se tornando cansativo fingir que gostávamos um do outro.
Ao menos ele respeitava meus horários de trabalho. Nos últimos dois dias, ele inclusive fora comigo buscar o Lucas na escola e, na volta, paramos para brincar. Era estranho, eu, que sempre pensei que ele gostava de fazer criança chorar, estava, agora, vendo-o se divertir com aquele menininho.
Duas semanas se passaram. Eu já tinha me acostumado com a situação, mas ainda era difícil me convencer de que ele estava tentando ajudar alguém. Seu amigo, o que tentou conquistar a menina, estava feliz e me agradeceu por ajudá-lo. Por um minuto comecei a me sentir parte daquela turma. Não parecia nada violenta ou perturbadora comparada à que eu via nos dias comuns de aula. Eram como simples adolescentes inconsequentes como qualquer outro.
Depois de três semanas, finalmente, os dois ficaram juntos. O fingimento iria ter fim. Não sei ao certo o que houve, mas eu já havia mudado minha opinião sobre cada um deles. Havia se tornado divertido passar um tempo ali entre eles. André me chamou, e eu o segui até um corredor vazio.
- Tudo bem agora, pode ir. – Disse ele.
- Só isso? Nem um obrigada? Nada? – Perguntei.
- O que mais você quer? Não vou contar seu segredo para ninguém.
- Não tem mais nada a me dizer?
- Tenho, até tenho.
- Então diga!
- Tudo que eu tenho a dizer é que você deveria deixar essa vergonha de lado.
Isso foi tudo que ele me disse. Virou-se e foi embora. Voltei para a sala e a aula começou. No meio da explicação, lembro-me de algo que estava a incomodar-me. Peguei um pedaço de papel e lá escrevi: “Por que me escolheu para ser sua namorada fajuta?”
O papel passou de mão em mão até chegar em André. Logo o papel retornou com a resposta, e o que li me surpreendeu ainda mais do que o estranho pedido. No papel, estava escrito: “Porque se eu precisava fingir namorar alguém, ao menos gostaria que fosse com alguém que amo.”

Ruty Rocha
Júlia Campos

Conto produzido a partir da letra da canção brega Deixe essa vergonha de lado, de Odair José.





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