
Tudo começou em uma chuvosa
noite de verão. Meu pai, que era viciado em jogos e apostas, gastou cada
centavo que tinha e faliu nossa família, fugiu e deixou-nos atolados em
dívidas. Minha mãe se esforçou, trabalhou horas e horas para dar a mim tudo que
eu queria ou precisava, mas não foi o bastante. Um ano depois, lá estava eu,
trabalhando como “empregadinha” de uma família muito rica, comecei a viver lá.
Escondi que era empregada de todos os meus conhecidos, precisava ter cuidado...
De jeito nenhum eu iria contar que era uma simples empregada, serviçal,
plebeia. O que pensariam de mim?
Frequentava a escola e
conversava com meus colegas como de costume, a única diferença era que agora eu
não tinha mais tempo para curtir com eles, nem tempo, nem dinheiro. Outra coisa
que também não mudou foi o fato de ter que me encontrar com o André todos os
dias. Sério, não sei o que aquele menino tinha, achando que podia conseguir
tudo que queria e que tinha moral pra tudo... Ah, faça-me um favor! Não sei como
ele ainda não tinha sido expulso da escola. Quando éramos crianças, ele
escondia minhas coisas, me jogava na piscina, me derrubava dos brinquedos...
Sem falar que, há dois anos,
ele conseguira me chantagear para fazer os trabalhos dele por dois meses. O
pior é que eu estava com as mãos atadas. Não podia me atrever a dedurá-lo ou me
vingar (como quero). Se o fizesse, a “gangue” dele iria dar um jeito em mim.
Parecia que ele tinha prazer em fazer crianças chorarem. Mas eu não tinha tempo
pra me importar com quem não valia a pena.
Depois da escola, ia buscar
Lucas, o filho da família para quem trabalhava. Na escola, ele tinha apenas 8
anos, era um amor de menino. Era lindo vê-lo brincar no parque sempre que
voltávamos da escola. No resto do dia, eu trabalhava e à noite fazia meus
trabalhos de casa. No outro dia, começava tudo de novo...
Já estava acostumada com a
rotina, quando, sem motivo algum, recebi uma visita indesejada. A campainha
tocou e, quando abri a porta, encontrei ninguém menos que André, com uma
desculpa esfarrapada, dizendo que minha correspondência fora parar na casa
dele. Disse-me que precisava de um favor, eu ignorei e o mandei ir embora, mas
ele voltou e insistiu. Concordei. afinal, parecia ser a única forma de ele me
deixar em paz.
Nos encontramos novamente
dois dias depois, e seu pedido realmente me deixou surpresa. André pediu-me que
fingisse ser sua namorada por um tempo. Quando perguntei por que eu faria isso,
ele simplesmente jogou mais uma de suas chantagens: “Eu sei que essa casa na
qual você diz morar não é sua. Sei que você tem um quartinho lá no fundo, que o
menino que você chama de “irmão” é o filho dessa família”. Perguntei o motivo,
e ele disse que era para ajudar um amigo, que estava tentando conquistar uma
garota. Basicamente, seria um encontro armado. Fui obrigada a aceitar, pelo meu
orgulho.
Não conseguia acreditar que
ele havia descoberto. A única coisa que me assustava mais do que a
possibilidade dos meus amigos e colegas descobrirem, era André descobrir.
Uma semana se passou e
aquele fingimento não acabava, eu já não aguentava mais passar nenhum minuto
perto daquele idiota. Certo que não precisávamos nos beijar nem nada assim, mas
já estava se tornando cansativo fingir que gostávamos um do outro.
Ao menos ele respeitava meus
horários de trabalho. Nos últimos dois dias, ele inclusive fora comigo buscar o
Lucas na escola e, na volta, paramos para brincar. Era estranho, eu, que sempre
pensei que ele gostava de fazer criança chorar, estava, agora, vendo-o se
divertir com aquele menininho.
Duas semanas se passaram. Eu
já tinha me acostumado com a situação, mas ainda era difícil me convencer de
que ele estava tentando ajudar alguém. Seu amigo, o que tentou conquistar a
menina, estava feliz e me agradeceu por ajudá-lo. Por um minuto comecei a me
sentir parte daquela turma. Não parecia nada violenta ou perturbadora comparada
à que eu via nos dias comuns de aula. Eram como simples adolescentes
inconsequentes como qualquer outro.
Depois de três semanas,
finalmente, os dois ficaram juntos. O fingimento iria ter fim. Não sei ao certo
o que houve, mas eu já havia mudado minha opinião sobre cada um deles. Havia se
tornado divertido passar um tempo ali entre eles. André me chamou, e eu o segui
até um corredor vazio.
- Tudo bem agora, pode ir. –
Disse ele.
- Só isso? Nem um obrigada?
Nada? – Perguntei.
- O que mais você quer? Não
vou contar seu segredo para ninguém.
- Não tem mais nada a me
dizer?
- Tenho, até tenho.
- Então diga!
- Tudo que eu tenho a dizer
é que você deveria deixar essa vergonha de lado.
Isso foi tudo que ele me
disse. Virou-se e foi embora. Voltei para a sala e a aula começou. No meio da
explicação, lembro-me de algo que estava a incomodar-me. Peguei um pedaço de
papel e lá escrevi: “Por que me escolheu para ser sua namorada fajuta?”
O papel passou de mão em mão
até chegar em André. Logo o papel retornou com a resposta, e o que li me
surpreendeu ainda mais do que o estranho pedido. No papel, estava escrito:
“Porque se eu precisava fingir namorar alguém, ao menos gostaria que fosse com
alguém que amo.”
Ruty Rocha
Júlia Campos
Conto produzido a partir da letra da canção brega Deixe essa vergonha de lado, de Odair José.
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