
Após
o surpreendente êxito – mas nem tão surpresa assim àqueles que já conheciam o
talento e a “nordestinidade” do advogado-escritor potiguar – da primeira versão
de Maldito Sertão, publicada em 2012
(uma coleção de contos que resgata causos, lendas e valores compartilhados por
nossos antepassados), o ousado, porém perspicaz, projeto de transfigurar os
contos em HQ’s chega ao público em 2016, com um ar de inovação, ao mesmo tempo que reclama a tradição e a
necessidade de olharmos pelo retrovisor e, mesmo com a sensação de uma carona
indesejada, viajarmos de volta ao passado.
Conduzidos
pelos artistas Leandro Moura, Renato Medeiros, Cristal Moura, Rodrigo Xavier e
Mario Rasec, os leitores da adaptação vão (re)encontrar cenários, roteiros e
sertanejos que, como qualquer um de nós, travam uma luta com seus anseios,
limitações, pecados e, até mesmo com o além, para permanecerem tendo o
privilégio de plantar, colher, ver seus filhos crescerem e, sobretudo,
aprenderem as lições que a vida nos ensina.
A HQ
Maldito Sertão, nessa perspectiva,
tem um papel ativo na missão de resgate da nossa cultura e das histórias de
nosso passado recente e de comunicá-las de modo sucinto, mas também profundo,
às gerações atuais. Mario Rasec, logo, traz à tona a dor da tragédia de uma
família destruída por uma temida fera em “Casa de Fazenda”, ao passo em que
evidencia a bravura da mulher nordestina em “A Mata” e pega carona com os
mistérios das estradas que cruzam a morte em “BR 101”. Ao lado de Leandro
Moura, Rasec resgata a tradução potiguar de uma lenda faminta por fígados
infantis e revisita a famigerada Viúva Machado, em “Fome Materna”. Leandro
Moura também adota um disfarce vampiresco para as lendas do sertão em “A Gruta”
e lembra da cobrança certeira do Mal em “Rio Abaixo”. Renato Medeiros, como se
não bastasse, visita o passado e volta ao período colonial para passear pelo
mundo dos mortos e vislumbrar indícios da formação do sincretismo religioso
brasileiro em “A Procissão do Nosso Senhor Morto”. Além disso, divide a cena
com Cristal Moura e Rodrigo Xavier para não deixar passar despercebida a grande
influência do catolicismo na formação da identidade cultural brasileira, ao
exortar os leitores quanto ao apego às riquezas e à obtenção de atalhos
sombrios para prosperar na vida em “O Oratório” e lembrar da função
social-religiosa que as lendas possuem de catequizar (enquanto sutilmente os
quadrinhos tecem críticas à religião) por meio de uma versão vingativa da velha
lenda da mula-sem-cabeça em “À Sombra da Cruz”.
Os
mais radicais e fiéis amantes dos contos, todavia, podem até queixar-se que a
adaptação para os quadrinhos subtraiu substancialmente a riqueza de detalhes,
emoções e elementos relevantes à construção de uma narrativa que cumprisse sua
missão de transportar os leitores a um outro nível de envolvimento com o
enredo. De fato, em alguns momentos, como em “A Gruta”, parece que está
faltando algo, de modo que uma leitura anterior dos contos torna-se essencial
para que a HQ faça sentido; no entanto, tal “furto artístico” – que pode representar
muito bem a traição à qual Marcio Benjamim se refere na apresentação da obra –
assume-se como justificável à medida que compreendemos que, por mais fidedigna
que uma adaptação de qualquer natureza se proponha a ser, ela continuará sendo
uma adaptação. Tal qual uma viagem de carroça – a qual suporta altas cargas e
todas as nossas malas sem nenhum problema – que de repente vê-se compelida a
transformar-se numa ousada viagem de jumento – e então somos compelidos também
a escolher a dedo quais malas trazer conosco e a quais renunciá-las pelo
caminho – assim é o desafio de transformar a densa obra de Maldito Sertão em quadrinhos leves, mas que não perdem sua essencial
carga de terror, suspense e regionalidade. Assim como não nos cabe julgar se
uma carroça é melhor que um jumento ou vice-versa simplesmente porque os dois
se propõem cumprir o mesmo objetivo (deslocar-se no sertão) de modo tão
diferentes, não nos cabe julgar, ainda que tenhamos toda a liberdade do mundo
para tal, se a versão original ou adaptada são melhores ou piores: um jumento
leve, rápido, resistente e obediente não perde seus atributos devido à existência
de uma confortável carroça; escolhamos nós, pois, por meio de qual desbravaremos
o sertão.
A
traição escandalosa, portanto, que a HQ Maldito
Sertão faz à obra de Márcio Benjamim em nenhuma hipótese pode ser encarada
como um trabalho maldito – o sertão, porém, graças à bravura da empreitada e ao
talento dos cinco artistas que o trasladaram do imaginário popular aos
quadrinhos, é que o permanece assim.
Anderson Sales
Que resenha maravilhosa! Muito obrigado!
ResponderExcluirParabéns ao resenhista ficou maravilhosa e profunda a analise. Sinto-me feliz pelo resenhista ter percebido algumas coisas "pequenas" quase imperceptíveis, mensagens, críticas sociais, e por que não dizer denuncias nas páginas dessa hq. Felicito ao leitor que perceba algo assim.
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