terça-feira, 7 de março de 2017

Bendita traição

Em um mundo cujos votos de fidelidade sinceros, dia após dia, tornam-se cada vez mais raros e valiosos, a gostosa e muito bem-vinda traição (ou seria uma adaptação?) da obra de Márcio Benjamim - Maldito Sertão - aos quadrinhos,  feita pela parceria entre o Coletivo Quadro9 e a editora Jovens Escribas, nos pede licença para adentrar nos porões da nossa mente e sacar de lá sensações, há muito guardadas desde a nossa infância, deixadas de presente pelo imaginário popular. E uma vez que, como o próprio Márcio recorda-nos do grande Marçal Aquino na apresentação dos quadrinhos, “adaptar é trair”, tal pecado, nesse sentido, merece todo o perdão do mundo, dos céus -  e das profundezas também - , pelo prazer que toca o leitor quando perpassa o olhar por suas curvas e sombras e sente na pele o frio do medo, concomitante ao calor de um sertão sedento, e testemunha o sobrenatural, dialogando normalmente da janela com nossos desejos por meio de suas ilustrações e personas não estranhas à nossa vista, parecidas, inclusive, com algum familiar nosso que mora no interior.
Após o surpreendente êxito – mas nem tão surpresa assim àqueles que já conheciam o talento e a “nordestinidade” do advogado-escritor potiguar – da primeira versão de Maldito Sertão, publicada em 2012 (uma coleção de contos que resgata causos, lendas e valores compartilhados por nossos antepassados), o ousado, porém perspicaz, projeto de transfigurar os contos em HQ’s chega ao público em 2016, com um ar de inovação,  ao mesmo tempo que reclama a tradição e a necessidade de olharmos pelo retrovisor e, mesmo com a sensação de uma carona indesejada, viajarmos de volta ao passado.
Conduzidos pelos artistas Leandro Moura, Renato Medeiros, Cristal Moura, Rodrigo Xavier e Mario Rasec, os leitores da adaptação vão (re)encontrar cenários, roteiros e sertanejos que, como qualquer um de nós, travam uma luta com seus anseios, limitações, pecados e, até mesmo com o além, para permanecerem tendo o privilégio de plantar, colher, ver seus filhos crescerem e, sobretudo, aprenderem as lições que a vida nos ensina.
A HQ Maldito Sertão, nessa perspectiva, tem um papel ativo na missão de resgate da nossa cultura e das histórias de nosso passado recente e de comunicá-las de modo sucinto, mas também profundo, às gerações atuais. Mario Rasec, logo, traz à tona a dor da tragédia de uma família destruída por uma temida fera em “Casa de Fazenda”, ao passo em que evidencia a bravura da mulher nordestina em “A Mata” e pega carona com os mistérios das estradas que cruzam a morte em “BR 101”. Ao lado de Leandro Moura, Rasec resgata a tradução potiguar de uma lenda faminta por fígados infantis e revisita a famigerada Viúva Machado, em “Fome Materna”. Leandro Moura também adota um disfarce vampiresco para as lendas do sertão em “A Gruta” e lembra da cobrança certeira do Mal em “Rio Abaixo”. Renato Medeiros, como se não bastasse, visita o passado e volta ao período colonial para passear pelo mundo dos mortos e vislumbrar indícios da formação do sincretismo religioso brasileiro em “A Procissão do Nosso Senhor Morto”. Além disso, divide a cena com Cristal Moura e Rodrigo Xavier para não deixar passar despercebida a grande influência do catolicismo na formação da identidade cultural brasileira, ao exortar os leitores quanto ao apego às riquezas e à obtenção de atalhos sombrios para prosperar na vida em “O Oratório” e lembrar da função social-religiosa que as lendas possuem de catequizar (enquanto sutilmente os quadrinhos tecem críticas à religião) por meio de uma versão vingativa da velha lenda da mula-sem-cabeça em “À Sombra da Cruz”.
Os mais radicais e fiéis amantes dos contos, todavia, podem até queixar-se que a adaptação para os quadrinhos subtraiu substancialmente a riqueza de detalhes, emoções e elementos relevantes à construção de uma narrativa que cumprisse sua missão de transportar os leitores a um outro nível de envolvimento com o enredo. De fato, em alguns momentos, como em “A Gruta”, parece que está faltando algo, de modo que uma leitura anterior dos contos torna-se essencial para que a HQ faça sentido; no entanto, tal “furto artístico” – que pode representar muito bem a traição à qual Marcio Benjamim se refere na apresentação da obra – assume-se como justificável à medida que compreendemos que, por mais fidedigna que uma adaptação de qualquer natureza se proponha a ser, ela continuará sendo uma adaptação. Tal qual uma viagem de carroça – a qual suporta altas cargas e todas as nossas malas sem nenhum problema – que de repente vê-se compelida a transformar-se numa ousada viagem de jumento – e então somos compelidos também a escolher a dedo quais malas trazer conosco e a quais renunciá-las pelo caminho – assim é o desafio de transformar a densa obra de Maldito Sertão em quadrinhos leves, mas que não perdem sua essencial carga de terror, suspense e regionalidade. Assim como não nos cabe julgar se uma carroça é melhor que um jumento ou vice-versa simplesmente porque os dois se propõem cumprir o mesmo objetivo (deslocar-se no sertão) de modo tão diferentes, não nos cabe julgar, ainda que tenhamos toda a liberdade do mundo para tal, se a versão original ou adaptada são melhores ou piores: um jumento leve, rápido, resistente e obediente não perde seus atributos devido à existência de uma confortável carroça; escolhamos nós, pois, por meio de qual desbravaremos o sertão.
A traição escandalosa, portanto, que a HQ Maldito Sertão faz à obra de Márcio Benjamim em nenhuma hipótese pode ser encarada como um trabalho maldito – o sertão, porém, graças à bravura da empreitada e ao talento dos cinco artistas que o trasladaram do imaginário popular aos quadrinhos, é que o permanece assim.

Anderson Sales 

2 comentários:

  1. Que resenha maravilhosa! Muito obrigado!

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  2. Parabéns ao resenhista ficou maravilhosa e profunda a analise. Sinto-me feliz pelo resenhista ter percebido algumas coisas "pequenas" quase imperceptíveis, mensagens, críticas sociais, e por que não dizer denuncias nas páginas dessa hq. Felicito ao leitor que perceba algo assim.

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