terça-feira, 7 de março de 2017

Amélia

Acordada às cinco. Limpando. Cozinhando. Passando. Esfregando. Dentro de duas horas o marido acordará. Tudo tem que estar pronto. Prepara as crianças. Toma banho. Arruma o cabelo. Passa perfume. É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido.
        — Bom dia, querido! O café já está esfriando na mesa.
        — Onde pensa que vai vestida desse jeito?! Mostrando as pernas. Pedindo para ser estuprada. Mulher MINHA não sai assim.
      Troca de roupa. Humilhada. Gastara tanto tempo escolhendo aquele vestido azul. Os filhos aguardam brincando na sala. Enxuga as lágrimas. Retoca a maquiagem. Vamos, crianças, a primeira aula já vai começar.
        Deixa os filhos na escola. Caminha rápido pela calçada. Olhando para o chão. Passa em frente a uma oficina. Tarde demais. Já está esperando. Fiu fiu. Ô lá em casa! Não pode andar sozinha que vem logo um amolar. Só queria não ter que passar por isso todos os dias.
        Entra no carro. Engata a marcha-ré. Sai do estacionamento. Outro motorista não a vê. Os dois carros se tocam. Foi suficiente para arranhar a pintura de ambos. O motorista não esconde a raiva. Tinha que ser mulher! Passa no supermercado. Faz as compras do mês. Começa a pensar no almoço. No jantar. Nas outras coisas que tem a fazer. Dar banho no cachorro. Dobrar as roupas. Guardar as compras. Lustrar os móveis. Aspirar o pó do tapete. Lavar os banheiros. Não pode se dar ao luxo de descansar. Afinal, não trabalha mesmo!
        Chega em casa. Pendura as chaves. Cumprimenta o cachorro, que parece desconfiado. Rega as plantas. Apanha uma almofada do chão. Estranho. Sente o cheiro de um perfume desconhecido. Fragrância doce. Um barulho atravessa os cômodos da casa. Algo caiu no chão do quarto. O porta-retrato com a foto das férias em família.
        Sobe as escadas. Silenciosamente. Pela brecha da porta avista o marido. Despido. Aos beijos com a dona do perfume. Não é possível! Como ele pôde fazer isso? Ele que sempre foi o único homem de sua vida! Uma lágrima desce. Ele a vê parada na entrada do quarto. Por um instante perde o ar.
        — Não é o que você está pensando. Ela que chegou me provocando.
        — Mas você não se importou de se entregar aos encantos dela, não é?
        — Você tem que me dar uma segunda chance.
        Segunda chance? E se o tivesse traído? Não haveria perdão. A chave que entra em várias fechaduras é uma chave-mestre. Já a fechadura que permite a entrada de várias chaves é uma fechadura quebrada.
        Ninguém acreditaria em sua palavra. Ele sempre fora perfeito. Seria julgada para o resto da vida. A desordem em uma cama desperta no marido a vontade de ir dormir fora de casa. Já dizia sua bisavó. Se foi traída, foi por descaso. Porque não fez seu homem se sentir o único. Dono do mundo. Seu dono. Não se importou com o bem-estar do lar. Não o satisfez. Não foi mulher o suficiente.        

Helen Caroline

Um comentário:

  1. Que texto... Infelizmente é a realidade de muitas. Parabéns por retratar isso, tu é talentosa demais!!!!

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