sexta-feira, 10 de março de 2017

A gota d'água

            Não aguento mais.
            Não mesmo. Acordar todo dia antes das seis. Estou esgotado. Chegar no trabalho e pegar a moto. Não aguento mais. Sair pela rua antes de todo mundo. Estou exausto.
            Exausto.
            Com esse enorme peso nas costas. Toda responsabilidade do mundo. Todo mundo cobra. Não tenho mais cabeça. Estou ficando louco. Doidinho da Silva. Não vejo a hora de bater as botas.
            Não vejo a hora.
            Ainda tem mais. Tem dias que eu nem volto pra casa. E quando eu volto não tenho tempo. Tô com um parafuso a menos. Sem tempo. Meu trabalho me persegue. Em casa, na TV, na praia. É uma mancha escura.
            Escurérrima.
           Dois anos atrás fui numa ocorrência. O pai tinha estuprado a filha de dois anos. A idade da minha filha. Perdi toda a fé na humanidade naquele dia. Surrei tanto o filho da puta que o IML nem recebeu o corpo. Mandou logo queimar. Naquele dia Deus desapareceu pra mim.
            Sumiu.
            Chegar em casa depois disso. Olhar nos olhos da minha filha e ver aquela menina toda esfolada. Fudida. A mãe era puta. Morava só com o pai. Me fez perder ainda mais a cabeça. Já tinha desistido. Mas ainda tinha por quem ficar vivo.
            Ou só existir.
            O nome dela era Wanda, minha filha, tinha 4 anos. Era linda, parceiro. Prodígio. Sabia somar como ninguém. Tocava flauta, parecia o flautista de Hamelin.
            Minha filha.
Mas o fim foi o que aconteceu no dia onze de setembro de 2014. Invadiram a creche da minha filha. Mataram os funcionários e estupraram a professora dela na frente dos alunos. Depois amarraram todos e incendiaram a creche. Minha filha tava lá.
Minha filha.
Você deva tá se perguntando: “Cadê a mãe dessa criança?’. Morreu no parto. O médico mandou escolher ela ou a criança. Quem disse que deu tempo? Retiraram a criança de dentro da mãe morta. Quando minha filha morreu, minha vida perdeu sentido. Foi a gota d’água.
            Era só vazio.
           Não me importava mais em morrer. Persegui os vagabundo por anos. Achei a boca dos cara. Matei. Queimei. E agora não tenho mais oque fazer. Só vou terminar meu dia. E todos vão me deixar em paz. Vou me encontrar com minha família de novo.
            Newton Navarro me espera.


Dante Othon

quinta-feira, 9 de março de 2017

A bênção, tio?

     Minha primeira vez foi numa casa de praia da minha família. Eu havia acabado de completar 12 anos. Meus pais e minha tia saíram para jantar. Fiquei sozinha na casa. Bom, sozinha não. Eu e meu tio. Ele me levou para seu quarto. Meu tio era um cara bacana. Ele ia ao culto todo domingo. Era um bom vizinho. Levava meus primos à escola. Até participava das reuniões. Cedia seu lugar no ônibus para os mais velhos. Era uma boa pessoa. Ele gostava de crianças. Gostava de meninas. Mas não era um estuprador. Não era um pedófilo. Não faria nenhum mal a sua sobrinha.
     A segunda foi na casa de meus avós. Era domingo. Dia de almoço em família. Eu disse que não queria. Ele não ligou. Disse que era só um carinho. Eu gritei. Ninguém escutou. Estavam comendo. Estavam sorrindo. Estavam falando da nova obra de caridade do meu tio. Ele ajudava as crianças. Eu era uma criança. Ele não me ajudava. Ele me batia. Mas, porra, ninguém me ouvia!
     Decidi contar a minha mãe. Ela me amava. Ela entenderia. Mas ela também amava meu tio. Será que me escutaria?
     Meu pai era meu protetor. Ele me amava. Ele entenderia. Mas ele jogava futebol com o meu tio. Chamava-o de irmão. Será que me escutaria?
     Minha tia também me amava. Não tinha mais opção. Ela me escutaria. E ela me escutou. Mas não se importou. A culpa era minha. Quem mandou ser exibida? Quem mandou ser tão bonita? Quem mandou ser tão vulgar com 12 anos? Quem mandou? Hein? Você é só uma menina. Nunca ajudou ninguém. Nunca deu seu lugar aos mais velhos no ônibus. Nunca foi ao culto no domingo. Nunca fez nada! Então trate de ficar calada.
     Medo. Eu só sentia medo. Dor. Meu corpo estava imerso em dor. Nada. Eu me sentia um nada. Rosa. Era a cor dos comprimidos em minha mão. Coragem. Era o que me faltava. Nos meus pais eu pensava. Por minha vida eu chorava. E a Deus eu orava. Mas nada disso importava. Eu não valia mais nada. Havia sido maltratada. Abusada. Humilhada. Desumanizada. Eu já estava cansada.
     Amargo. Era o gosto da droga em minha boca. Mas não mais amargo do que a dor. Nada era mais amargo do que a dor. Precisava fazer parar. O sofrimento tinha que acabar.
     E acabou.

Ana Caroline

Milene André

quarta-feira, 8 de março de 2017

Marias

6h. Sua mãe ainda não começou a limpar a casa hoje. Tá tudo sujo. Você não tem condições de limpar, pai? Suas mãos caíram? Esse também é o seu papel. Briga.
8h da manhã. Caminha na rua. Moto. Buzina. Encara. Olha pra frente! Quer bater?
Ônibus lotado. Será que posso sentar aqui? Pergunta, gentilmente.  Percebe um homem encarando. Secando. Descarado. Quer me comer? Quer? Ridículo.
Desce numa parada próxima ao trabalho. A pé novamente. Passa por uma construção. Várias sacolas na mão. Um peso e um passo. Fiu fiu. Cantada barata. Reta sem palavra. Tá assoviando pra quem? Atrevido.
Hospital. Lotado. É enfermeira, ágil e cuidadosa. Você precisa de uma dose de benzetacil. Parece desconfiado. Ela vira as costas. Descarado. O paciente questiona a necessidade do medicamento com o enfermeiro ao lado. Algo errado? Precisa de uma segunda opinião específica?  O estagiário não dirá algo diferente da enfermeira-chefe.
Rotina e cansaço. Mais ônibus lotado. Só que é sexta. Sexta! Alegria e prazer. Produzida. 00h. Vestido colado. Sensualidade de mulher. Que roupa vulgar! Se dê o respeito! Filha minha não se veste assim. Na sua idade não usava essas roupas.
Música alta. Bebida free. Tudo harmonizava. Batida. Dança. Bebida. Leveza alcoólica. Tá bêbada? Se dê o respeito! Mulher educada não bebe.
Mulheres. Machismo. Até quando? Avante, Marcha das Vadias!


Maria Fernanda
Yasmin Cruz 

O caso


            Meu nome é César e tenho 17 anos. Minha mãe me botou esse nome por parecer nome de rico, até porque na Bíblia tem dizendo: “Dai a César o que é de César”. Moro na favela do Japão, lugar onde desde criança vi o mundo com os olhos diferentes. Olhos de favelado. Sim, favelado é o que sou.
            Filho de mãe solteira, me vi rodeado, por toda a vida, dessa miséria de lugar. Miséria não, que é daqui que tiro o sustento. Graças ao meu cerebelo, consegui sair da lavanderia de mamãe, onde trabalhava para ganhar o mundo e ser dono das três maiores bocas da região. Minhas ferramentas de trabalho são o crack, a coca e a erva. Toninho traz da Bahia e eu revendo aqui. Também tem o tal do docinho, produto principal que vendo aos boys do colégio Palmares.
            Semana retrasada, tive uma treta com um tal de Ricardo, pistoleiro famoso aqui da “ZO”. Mandei ele fechar o veaco Marcão.  O feladaputa me desobedeceu. Ele por certo não sabia com quem estava brincando.
            Naquele mesmo dia, reuni meu bonde para ir atrás daqueles dois arrombados. Cléber e Lúcio trouxeram as nove e saímos pra guerra. Ao chegar no bairro da Esperança, na nua Natal, avistamos um primo de Marcão. Jogamos ele dentro do carro pra tirarmos satisfação. Enchemos a cara dele de porrada. Até que ele falou o endereço onde se encontrava o Marcão.
            No final daquela tarde, armamos uma emboscada. Ficamos de tocaia na esquina até o momento em que ele deu as caras. Começaram os disparos. Derrubamos o veaco, mas logo apareceu o Ricardo com uma SMG, expulsando-nos da região. Foi o maior aperreio. Éramos três, mas ele tinha uma SMG, o que nos fez correr. Saímos correndo em direção ao carro e só conseguimos escapar porque a chave já estava na ignição.
            No dia seguinte, a notícia estava em todos os lugares: Tribuna do Norte, Papinha e até mesmo no RN TV. Saímos nas duas edições. Meu nome ficou inflado em toda Natal. Nunca fui tão respeitado. A minha moral aumentou 300% naquele dia.
            As matérias diziam:
            Tiroteio no bairro da Esperança tira a tranquilidade dos moradores e deixa uma morte;
O amante do famoso pistoleiro, Ricardo Bala, é morto em tiroteio na tarde de ontem. 
            Pois não é que os veados tinham um caso!
 Matheus Oliveira 
 Eudes Silva 
            

terça-feira, 7 de março de 2017

Bendita traição

Em um mundo cujos votos de fidelidade sinceros, dia após dia, tornam-se cada vez mais raros e valiosos, a gostosa e muito bem-vinda traição (ou seria uma adaptação?) da obra de Márcio Benjamim - Maldito Sertão - aos quadrinhos,  feita pela parceria entre o Coletivo Quadro9 e a editora Jovens Escribas, nos pede licença para adentrar nos porões da nossa mente e sacar de lá sensações, há muito guardadas desde a nossa infância, deixadas de presente pelo imaginário popular. E uma vez que, como o próprio Márcio recorda-nos do grande Marçal Aquino na apresentação dos quadrinhos, “adaptar é trair”, tal pecado, nesse sentido, merece todo o perdão do mundo, dos céus -  e das profundezas também - , pelo prazer que toca o leitor quando perpassa o olhar por suas curvas e sombras e sente na pele o frio do medo, concomitante ao calor de um sertão sedento, e testemunha o sobrenatural, dialogando normalmente da janela com nossos desejos por meio de suas ilustrações e personas não estranhas à nossa vista, parecidas, inclusive, com algum familiar nosso que mora no interior.
Após o surpreendente êxito – mas nem tão surpresa assim àqueles que já conheciam o talento e a “nordestinidade” do advogado-escritor potiguar – da primeira versão de Maldito Sertão, publicada em 2012 (uma coleção de contos que resgata causos, lendas e valores compartilhados por nossos antepassados), o ousado, porém perspicaz, projeto de transfigurar os contos em HQ’s chega ao público em 2016, com um ar de inovação,  ao mesmo tempo que reclama a tradição e a necessidade de olharmos pelo retrovisor e, mesmo com a sensação de uma carona indesejada, viajarmos de volta ao passado.
Conduzidos pelos artistas Leandro Moura, Renato Medeiros, Cristal Moura, Rodrigo Xavier e Mario Rasec, os leitores da adaptação vão (re)encontrar cenários, roteiros e sertanejos que, como qualquer um de nós, travam uma luta com seus anseios, limitações, pecados e, até mesmo com o além, para permanecerem tendo o privilégio de plantar, colher, ver seus filhos crescerem e, sobretudo, aprenderem as lições que a vida nos ensina.
A HQ Maldito Sertão, nessa perspectiva, tem um papel ativo na missão de resgate da nossa cultura e das histórias de nosso passado recente e de comunicá-las de modo sucinto, mas também profundo, às gerações atuais. Mario Rasec, logo, traz à tona a dor da tragédia de uma família destruída por uma temida fera em “Casa de Fazenda”, ao passo em que evidencia a bravura da mulher nordestina em “A Mata” e pega carona com os mistérios das estradas que cruzam a morte em “BR 101”. Ao lado de Leandro Moura, Rasec resgata a tradução potiguar de uma lenda faminta por fígados infantis e revisita a famigerada Viúva Machado, em “Fome Materna”. Leandro Moura também adota um disfarce vampiresco para as lendas do sertão em “A Gruta” e lembra da cobrança certeira do Mal em “Rio Abaixo”. Renato Medeiros, como se não bastasse, visita o passado e volta ao período colonial para passear pelo mundo dos mortos e vislumbrar indícios da formação do sincretismo religioso brasileiro em “A Procissão do Nosso Senhor Morto”. Além disso, divide a cena com Cristal Moura e Rodrigo Xavier para não deixar passar despercebida a grande influência do catolicismo na formação da identidade cultural brasileira, ao exortar os leitores quanto ao apego às riquezas e à obtenção de atalhos sombrios para prosperar na vida em “O Oratório” e lembrar da função social-religiosa que as lendas possuem de catequizar (enquanto sutilmente os quadrinhos tecem críticas à religião) por meio de uma versão vingativa da velha lenda da mula-sem-cabeça em “À Sombra da Cruz”.
Os mais radicais e fiéis amantes dos contos, todavia, podem até queixar-se que a adaptação para os quadrinhos subtraiu substancialmente a riqueza de detalhes, emoções e elementos relevantes à construção de uma narrativa que cumprisse sua missão de transportar os leitores a um outro nível de envolvimento com o enredo. De fato, em alguns momentos, como em “A Gruta”, parece que está faltando algo, de modo que uma leitura anterior dos contos torna-se essencial para que a HQ faça sentido; no entanto, tal “furto artístico” – que pode representar muito bem a traição à qual Marcio Benjamim se refere na apresentação da obra – assume-se como justificável à medida que compreendemos que, por mais fidedigna que uma adaptação de qualquer natureza se proponha a ser, ela continuará sendo uma adaptação. Tal qual uma viagem de carroça – a qual suporta altas cargas e todas as nossas malas sem nenhum problema – que de repente vê-se compelida a transformar-se numa ousada viagem de jumento – e então somos compelidos também a escolher a dedo quais malas trazer conosco e a quais renunciá-las pelo caminho – assim é o desafio de transformar a densa obra de Maldito Sertão em quadrinhos leves, mas que não perdem sua essencial carga de terror, suspense e regionalidade. Assim como não nos cabe julgar se uma carroça é melhor que um jumento ou vice-versa simplesmente porque os dois se propõem cumprir o mesmo objetivo (deslocar-se no sertão) de modo tão diferentes, não nos cabe julgar, ainda que tenhamos toda a liberdade do mundo para tal, se a versão original ou adaptada são melhores ou piores: um jumento leve, rápido, resistente e obediente não perde seus atributos devido à existência de uma confortável carroça; escolhamos nós, pois, por meio de qual desbravaremos o sertão.
A traição escandalosa, portanto, que a HQ Maldito Sertão faz à obra de Márcio Benjamim em nenhuma hipótese pode ser encarada como um trabalho maldito – o sertão, porém, graças à bravura da empreitada e ao talento dos cinco artistas que o trasladaram do imaginário popular aos quadrinhos, é que o permanece assim.

Anderson Sales 

Ditadura pra quê?

     Ora. Quem já se viu? Volta da ditadura. Vai pra puta que pariu. Ele tá pensando o quê? Que a volta da ditadura é bom? Bom pra quem? Pra mim é que não é. Ele já viveu alguma ditadura? Já viu gente morrer? Não? Mas eu já vi. E posso lhe garantir. Ditadura não é bom. Nem pra mim, nem pra você.
     Você já viu arma garantir paz? Já viu violência garantir ordem? Pau-de-arara fazer coisa boa? Nem. Ditadura? Ditadura cheira a morte. Sim. Morte. Estupro. Tortura.
     Não. Não caio nessa. Não, senhor.
     Ditadura é uma senhora. Velha. Decrépita. Morta. Enterrada. Deixa-a lá. Fria. Esquecida. Decomposta. Acabada.
     Dor. Dor. Dor. Foi tudo o que ela trouxe. Dor psicológica. Dor carnal. Opressão.  Centenas de pessoas violadas por aqueles de arma na mão. Sim.  Aqueles que juraram morrer para defender a pátria. Mas que coisa mais sem cabimento. Sem lógica. Sem sentido. O mundo precisa é de paz. De flores, em vez de canhões. Tem coisa mais bonita que a paz? A paz é branca. A paz é linda. Paz! Sim. Precisamos da paz.
     Mas aí vem um jumento como esse. Demente como um mosquito. Querendo ressuscitar um regime autocrático. Sai pra lá sem juízo! Esse tal de Bolsonaro não tem o que fazer não, seu Francisco? Tanto assunto urgente. Pobreza. Miséria. Insegurança. Péssima saúde. E ele se preocupa em restaurar isso! Dizendo que é pro bem de todos. Pro bem de quem? Pro meu é que não é.
     E o senhor, seu Francisco, com essa cara de cachorro sem dono? Ainda vem me pedir para votar nessa milícia? De forma alguma. Jamais.
    E quer saber de uma coisa? Que se lasquem. Não estou nem aí. Eles que caminhem. Que subam morro acima com essa ruma de cartaz ridículo. Que andem pelas ruas de toda a periferia. A tarde toda. Eu é que não vou. Participar da molesta dessa passeata. Eles que tomem a praça. Com essa cambada de inútil. Não vou mesmo. Porque eu já cansei de toda essa asneira. Que coisa mais Idiota! Não. Não vou colocar minha vida nas mãos dessa elite sem noção. E já chega. Não vou sair na rua com essa ruma de babão. Eu não tenho mais paciência. Não tenho. Só quero que me deixem sozinho. Eu e a minha língua verdadeira. Que só os mais espertos entendem. Compreendeu?
    E não. Já disse ao senhor, seu Francisco. Em 2018 não voto em Bolsonaro. Ora! Que chatice! Tá pensando o quê? Que eu vou contribuir com essa tolice? De forma alguma. Eu já vivenciei uma ditadura. É horrível. Perdi muitos familiares. Amigos. Presenciei a tortura de meus professores. Do padre da minha cidade. O sumiço de diversas pessoas. E sabe o que aconteceu? Nunca mais apareceram. Não. Já disse. Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Nem morta. E eles que não venham na minha porta. Não entram. Não deixo. Já chega. Acabou.
   Ah, não vou.


 João Pedro B. Neto

Amélia

Acordada às cinco. Limpando. Cozinhando. Passando. Esfregando. Dentro de duas horas o marido acordará. Tudo tem que estar pronto. Prepara as crianças. Toma banho. Arruma o cabelo. Passa perfume. É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido.
        — Bom dia, querido! O café já está esfriando na mesa.
        — Onde pensa que vai vestida desse jeito?! Mostrando as pernas. Pedindo para ser estuprada. Mulher MINHA não sai assim.
      Troca de roupa. Humilhada. Gastara tanto tempo escolhendo aquele vestido azul. Os filhos aguardam brincando na sala. Enxuga as lágrimas. Retoca a maquiagem. Vamos, crianças, a primeira aula já vai começar.
        Deixa os filhos na escola. Caminha rápido pela calçada. Olhando para o chão. Passa em frente a uma oficina. Tarde demais. Já está esperando. Fiu fiu. Ô lá em casa! Não pode andar sozinha que vem logo um amolar. Só queria não ter que passar por isso todos os dias.
        Entra no carro. Engata a marcha-ré. Sai do estacionamento. Outro motorista não a vê. Os dois carros se tocam. Foi suficiente para arranhar a pintura de ambos. O motorista não esconde a raiva. Tinha que ser mulher! Passa no supermercado. Faz as compras do mês. Começa a pensar no almoço. No jantar. Nas outras coisas que tem a fazer. Dar banho no cachorro. Dobrar as roupas. Guardar as compras. Lustrar os móveis. Aspirar o pó do tapete. Lavar os banheiros. Não pode se dar ao luxo de descansar. Afinal, não trabalha mesmo!
        Chega em casa. Pendura as chaves. Cumprimenta o cachorro, que parece desconfiado. Rega as plantas. Apanha uma almofada do chão. Estranho. Sente o cheiro de um perfume desconhecido. Fragrância doce. Um barulho atravessa os cômodos da casa. Algo caiu no chão do quarto. O porta-retrato com a foto das férias em família.
        Sobe as escadas. Silenciosamente. Pela brecha da porta avista o marido. Despido. Aos beijos com a dona do perfume. Não é possível! Como ele pôde fazer isso? Ele que sempre foi o único homem de sua vida! Uma lágrima desce. Ele a vê parada na entrada do quarto. Por um instante perde o ar.
        — Não é o que você está pensando. Ela que chegou me provocando.
        — Mas você não se importou de se entregar aos encantos dela, não é?
        — Você tem que me dar uma segunda chance.
        Segunda chance? E se o tivesse traído? Não haveria perdão. A chave que entra em várias fechaduras é uma chave-mestre. Já a fechadura que permite a entrada de várias chaves é uma fechadura quebrada.
        Ninguém acreditaria em sua palavra. Ele sempre fora perfeito. Seria julgada para o resto da vida. A desordem em uma cama desperta no marido a vontade de ir dormir fora de casa. Já dizia sua bisavó. Se foi traída, foi por descaso. Porque não fez seu homem se sentir o único. Dono do mundo. Seu dono. Não se importou com o bem-estar do lar. Não o satisfez. Não foi mulher o suficiente.        

Helen Caroline

Escrevendo-se

Eu tentei. Eu juro que tentei.
Mas foram provas e provas; e trabalhos e trabalhos; e fórmulas e fórmulas. A mesma e velha vida de aluno do IF.
Tentei.
A ideia só não vinha. Não veio. Pensei na educação e na política. Na ciência e na religião. Nos livros. Na pasta de dente. No celular. No lápis. No papel. Na televisão.
Nenhum pareceu certo.
Este também não parece certo; não me entenda mal. Foi o mais criativo em que consegui pensar. Vagueei entre temas. Olhei o tempo passar. Fiquei no quarto o dia todo. Encarei o computador por horas. Foi com esse “tema” que acabei.
São quase oito da noite.
Já sei. É um trabalho de Língua Portuguesa, não é? Pensei na metalinguagem. Um texto sobre o texto. Tudo aquilo que aprendemos na aula de alguns meses atrás.
O que estou fazendo? Tentando escrever como quem escreve?
Devo me basear em Marcelino Freire. Como? Como fazer algo parecido? Algo minimamente próximo à teimosia de Totonha? À dor de Da Paz? À raiva de Nação Zumbi?
Não sei. Solto palavras. Espero que elas façam sentido de alguma forma.
São quase nove da noite.
Releio o que já escrevi a cada dois segundos. Retiro o insistente gerúndio. Encurto as frases. Pergunto. Coloco pontos finais.
E o título? Como pensar num título para isso? Não posso nomear algo que nem sei sobre o que é.
São quase dez da noite.
Acho que não vou entregar isso. Deixarei salvo, com certeza. Mas não será meu trabalho. Vale muitos pontos na média, afinal. Tem que ser algo com mais significado. Acho que vou voltar para a educação. Estamos numa crise nesse meio.
Mas todos falam sobre a crise.
O polêmico. Não quero escrever o que todos escrevem. Eu não escrevo. Não vou usar um momento tão raro para falar sobre o que já sabem.
São quase onze da noite.
Acho que estou perdida.
O texto não deu duas páginas ainda. Não sei o tamanho adequado. Acho que ainda é pouco. Vou continuar escrevendo.
É quase meia noite.
Tenho prova na segunda. É sábado. Ainda não estudei. Deveria ter escrito isso pela manhã. Ou pela tarde, no máximo. Mas é quase meia noite. Ainda estou aqui. Tento tirar um pouco do peso da consciência por ainda não ter terminado.
Só continuo escrevendo. Não consigo parar.
Deveria estar fazendo o trabalho verdadeiro. Aquele, sobre o qual falei antes. O polêmico, com perguntas reflexivas. Questionando o motivo do mundo ser como é.
Mas não dá.
Peço perdão a minha colega. Ela acha que eu já fiz o texto. Pensa que fiz o da educação. Mandei uma mensagem. Avisei que não faria sobre isso. Ela não viu. Já foi dormir. E eu continuo aqui, no quarto. Ainda encarando o computador.
Acho que é isso.
Deu quase duas páginas. Tenho que pensar no de verdade. E na prova. E nos outros trabalhos. Ainda tenho que pensar no título. Desse (deste?) e do outro.
            É uma da manhã.
            Acabei.

Beatriz Egito