quinta-feira, 8 de maio de 2014

Remanejamento



Madrugada chuvosa. Novamente estou eu refletindo, em meu mar revolto de sentimentos, e ressuscitando aquela pequena dor que sempre me incomodou, como uma agulha esquecida no bolso, que penetra na pele sempre que possível. Já fora maior. Agora é apenas uma pequena saudade. As coisas, no início, sempre são piores.

Tudo começou com o “Remanejamento”, a famosa política do IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte – que possibilita aos funcionários a oportunidade de mudarem de Campus em que estão ensinando, a fim de serem remanejados para a sua cidade ou outra mais próxima, para ficarem pertinho dos seus familiares. Em pouco tempo, o professor que trabalha no Campus Pau dos Ferros, por exemplo, pode se transferir para o Natal-Central e começar a lecionar em seu novo local de trabalho; o que trabalha em Apodi pode ser transferido, sem muitas dificuldades, para atuar na região metropolitana do estado, como em São Gonçalo do Amarante ou Parnamirim. Sempre ocorre esse sistema de transferências entre os professores do Instituto. Para os docentes, o programa é uma ótima oportunidade para novas experiências. Minha aflição começou desde que soube de sua existência e não sou o único que sofro com ela.

A ideia de ter que mudar de professor é terrível. Você o vê toda semana, conversa com ele, conta piadas, adquire conhecimento; sem notar, o laço já foi criado. Ele se torna alguém tão próximo e importante que você preferiria deixar de aprender a ter outro com disposição para lhe ensinar. A “importância” de que falo não é a mesma que se atribui a um amigo, a um parente ou a uma paquera. A relação entre aluno e professor é diferente de todas essas e, talvez por isso, seja tão especial. É um afeto interessante, não muito próximo e nem muito distante, mas é o suficiente para fazer machucar quando eles vão embora.

Se eu disse tudo isso é porque já entendo muito bem o que o Remanejamento pode fazer. Só no ano passado foram duas experiências. O primeiro do Campus São Gonçalo a aderir foi o professor de Geografia, Romero Tertulino, o mais apegado com todos os alunos. Pode imaginar o que isso causou? Talvez tenha sido ainda pior pelo fato de todos os alunos, na época, serem calouros. Nunca havíamos passado por esse tipo experiência, e ela ocorreu logo com o mais próximo a nós.

Lembro-me bem daquele dia. O professor entrou na sala e esperou que todos se acomodassem em suas carteiras. Quando ele nos contou que iria deixar de trabalhar em nosso Campus, ninguém conseguiu conter as lágrimas. Não conseguíamos nos imaginar outro docente em seu lugar. Romero era ótimo professor. Obviamente ele tinha seus defeitos, como qualquer pessoa, no entanto era muito sábio e passava segurança em tudo que ensinava. Toda vez que chegava à sala para dar aula, ele tinha que desenhar o mapa mundi no quadro. Era de praxe. Gostávamos de ouvir suas histórias sobre o período em que trabalhava em uma empresa de intercâmbios, histórias de suas viagens - sendo uma delas até a Tunísia. Gostávamos, também, quando ele contava suas experiências vividas em outras escolas, essas eram as melhores. Foi através de uma dessas que eu comecei a vê-lo de forma diferente.

Estávamos estudando Geografia Física, mas nesse dia o assunto mudou de curso. Começou, então, uma pequena discussão de ideias na sala entre alguns alunos e o professor. Rapidamente o assunto passou para Geografia Política. Os alunos argumentavam que todos que tentaram o processo seletivo para o IFRN tiveram as mesmas chances e, se eles não conseguiram a aprovação, a culpa era inteiramente deles. O professor contou-nos então uma história sua para contrariar a ideia dos alunos.

Em uma de suas turmas de Ensino Fundamental I, o professor Romero tinha um aluno muito dedicado à disciplina de Geografia. Ele sempre se mostrava interessado em todo tipo de assunto que tivesse algum tipo de relação com a matéria. Romero, então, passou um trabalho para ser apresentado. Todos na sala deveriam utilizar cartolina como forma de exposição. No dia da apresentação, todos os estudantes fizeram ótimas exposições. O único que não havia feito era o jovem que Romero pensara ser o mais dedicado. Ao final da aula, Romero seguiu em direção a esse aluno e os dois começaram a conversar. Romero disse que estava muito decepcionado com ele por não vê-lo apresentar. O aluno, então, começou a chorar e o abraçou. Repetidas vezes desculpou-se com o professor. Disse que não havia feito o trabalho por não ter conseguido o dinheiro para comprar as cartolinas. Romero se emocionou e percebeu sinceridade nas palavras do garoto.

Retomando a discussão, Romero concluiu que nem todas as pessoas tinham incentivo ou mesmo apoio, quer seja ele financeiro ou familiar. E, para o concurso do IFRN, esse talvez fosse um fator muito decisivo, em virtude de ser o primeiro concurso de muitos jovens e devido à faixa etária dos que realizavam a prova.

Talvez agora alguém entenda a razão de meu sofrer. Não se tratava simplesmente do que um professor poderia oferecer sobre a sua área de atuação, mas sim daquilo que ele era. Além de se importar com a nossa visão sobre a Geografia, Romero também queria contribuir para a nossa formação como verdadeiros cidadãos. Deixaríamos de ouvir as boas experiências, os conselhos incríveis, as ‘piadas’ sem noção e também de ouvir aquela velha expressão: “Não consigo lembrar o que expliquei na aula passada. Onde paramos?”.

Aproveitando o bonde, mais um se foi. A professora Priscila, que lecionava Inglês, não perdeu tempo e se inscreveu também. Quando lhe era feita alguma pergunta sobre o remanejamento, o que se ouvia como resposta era que as chances de que ela fosse transferida naquele momento eram muito poucas. Infelizmente ela estava errada. Diferentemente do professor Romero, para ela fizemos uma festa de despedida com todos da turma. O seu remanejamento não nos pegou tão de surpresa como o anterior, todavia pareceu doer até mais. Em sua despedida, até mesmo aquelas pessoas que não se expressavam tanto se emocionaram.

Priscila era outra professora cativante. Ensinou-nos muito mais que simples palavras ou tempos verbais. Nas suas aulas, ela mostrava aos que sentiam alguma dificuldade que era fácil aprender; e aos que já tinham certo conhecimento na bagagem, ela os incentivava a fazer mais e nos mostrava o quanto poderíamos alcançar, se quiséssemos. Uma das coisas que marcaram suas aulas foi a leitura do livro “O Pequeno Príncipe”. Ler já é bom. Agora, ler em inglês, juntamente com 40 pessoas, refletindo em todos os valores repassados pelo livro, é, de fato, uma experiência um tanto única. Foram minhas melhores aulas.

Pouco tempo depois da partida deles, a saudade era imensa. Na boca de todos se ouviam belas frases sobre como eles eram bons professores e, além de tudo, boas pessoas. As frases falavam de como os alunos passaram a ver a Geografia como uma matéria diferente, ou como ler um livro em Inglês nunca fora tão proveitoso e gratificante. Se faço essa crônica é porque quero me livrar dessa agulha algum dia, quando não sei. Só sei que quero estar em um lugar onde a saudade não possa me alcançar.
David Allysson

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